10/22/2009

1984 Tupiniquin

Wilson Silva andava pela sua rua tentando manter seu passo regular, sem apressá-lo. Mantinha a face o mais neutra possível, qualquer alteração podia denunciá-lo do que estava prestes a fazer. Queria chegar logo em casa para tentar burlar a Lei, mas não podia apressar o passo, pois eles estavam de olho. Queria apalpar o bolso do casaco para sentir o volume reconfortante que trazia ali, mas seria arriscado demais, eles iriam perceber. Ao vislumbrar sua casinha de subúrbio, com a pintura de um azul pálido e descolorido pelo tempo descascando em vários pontos e com marcas de mofo junto ao solo, teve vontade de correr, mas se obrigou a manter a velocidade sob controle. Eles poderiam ver e perceber que ele iria tentar mais uma vez.

Demorou um pouco para conseguir abrir a porta, os tremores no último mês tinham piorado ao invés de amainar, como dizia a propaganda oficial. Mas logo estava dentro de casa, porém ainda não estava seguro. Apesar de morar sozinho, ali também era vigiado. A câmera que eles instalaram para fazer valer a Lei o fitava do alto da parede, e sensores de movimento faziam com que o acompanhassem a cada passo, dentro de sua própria casa. No quarto era a mesma coisa, e nem a mais completa escuridão o livraria da visão noturna das câmeras. Na cozinha apertada era a mesma coisa. O único local onde eram cegos era o banheiro, um mínimo de privacidade ainda respeitada pela Lei. E era para lá que ele se dirigia, naturalmente. Chegar de um dia de trabalho e tomar um banho era o seu cotidiano, não despertaria suspeitas. Entrou e trancou a porta.

Estava a salvo das câmeras. Ficou encostado na porta, o coração galopando acelerado. Tentou controlar o tremor das mãos. A boca estava seca e a língua parecia inchada na boca. Um peso nas costas parecia querer esmagá-lo. A abstinência cobrava seu preço. Controlou-se um pouco, e então olhou para o teto, onde estava fixado o odioso detector de fumaça, com uma luz vermelha piscando intermitente. Um aviso constante de que nem ali estava a livre da Lei. Então pôs em prática seu plano, cuidadosamente concebido.

Tirou a escova de dente e a pasta do copo, depositando-as sobre a pia. Era um copo de plástico amarelo opaco, bem leve. Do bolso da calça retirou o durex furtivamente surrupiado no trabalho. Subiu no vaso sanitário, de forma a alcançar o detector de fumaça, e por pouco não conseguiu. Precisava ficar na ponta dos pés, se esticando todo, mas conseguiu. Encaixou o copo plástico cobrindo perfeitamente o detector, e colou-o ao teto com a fita durex, aplicando diversas camadas para vedar bem. A vedação tinha de ser perfeita, isso era importante. Pronto, desceu do vaso e admirou por um instante o trabalho artesanal. Estava concluída a parte mais difícil.

A próxima etapa era mais fácil. Abriu a água do chuveiro o mais quente possível, e aguardou a névoa de vapor tomar conta do lugar. A fumaça tinha que sair pelo basculante, e o plano iria por água abaixo se um dos vizinhos percebesse a fumaça. Malditos Espiões da Lei! Estavam exultantes com a última vitória do politicamente correto, da Lei que o oprimia. Nem em casa, agora! Nem em casa! Mas iria conseguir ludibriar a todos. A fumaça sairia misturada ao vapor, e nenhum vizinho inconveniente iria perceber. O cheiro se dispersaria no quintal antes de atingir algum nariz sensível. Estava feito.

Então colocou a mão no bolso do casaco e retirou de lá o maço e o isqueiro, já antecipando o prazer que em breve desfrutaria. O vapor já embaçava o espelho trincado do banheiro, era a hora certa. Levou o “bastão de câncer” a boca, se detendo para cheirá-lo antes. Acendeu, tragou. A fumaça desceu áspera pelas vias aéreas, a segunda tragada foi melhor, e na terceira sentiu uma ligeira vertigem, melhor que qualquer cerveja amarga que ainda era permitida e consumida sem a menor moderação, por pais de família que deixavam os filhos passar fome pelo prazer de se embebedar, e batiam nas mulheres indefesas e depois pediam perdão, pois a culpa era do álcool, juravam que iriam parar e eram perdoados. Sua mente divagava. Primeiro foram as lojas, e ele achou razoável. Depois os bares e boites, e ele se irritava, mas obedecia. Depois os locais públicos mesmo ao ar livre, e ele se resignou. Agora sua própria casa! Sua própria casa! Já fora primeiro repreendido, depois multado. Se reincidisse, seria preso. Mas lá estava ele, correndo o risco. Talvez pelo vício, talvez como um ato de liberdade, ele mesmo não saberia dizer. Mas estava lá, cometendo um crime, indo contra a Lei. E sairia impune. Dessa vez, tudo estava perfeito.

Ouviu a sirene ao longe e seu coração deu um salto, mas logo se abrandou. Não era com ele, o plano não tinha falhas. Mas as sirenes pareciam se aproximar, e ele se inquietou. Passava na sua rua, a Polícia Fiscalização da Lei. Não, não passava. A sirene ficou constante, não se afastava, estavam à sua porta. Jogou rápido o cigarro pela metade no vaso e deu a descarga ao mesmo tempo em que ouvia a porta da frente sendo arrombada. Eles não perdiam tempo batendo quando queriam dar o flagrante. Escondeu rápido o maço e isqueiro atrás do espelho, enquanto ouvia o barulho das botas indo direto para o banheiro. Como eles sabiam? Como? Abriu o basculante, a fumaça precisava se dissipar, mas era tarde. A porta do banheiro foi feita em pedaços, e ele se viu jogado ao chão com violência, sendo prontamente algemado. Estava sendo revistado, enquanto seu banheiro era revistado com truculência. A pia foi arrancada, eles precisavam de provas, não iriam achar, não podiam achar. Ouviu o barulho estridente de vidro se despedaçando, e com o canto dos olhos viu o espelho no chão. Tudo acabara. Mas como? Como descobriram tão rápido?

Um deles subiu no vaso e arrancou o copo plástico. A luz vermelha ainda piscava. Ele ouviu a comunicação pelo rádio, um oficial perguntando se o contato fora positivo. Sim, responderam ao lado e acima dele. A câmera não deu defeito. Será que esse povo acreditou mesmo que não iríamos pôr câmeras no banheiro? Detector de fumaça, essa é boa!